domingo, 20 de junho de 2010

João Batista Araujo e Oliveira responde sobre Como ensinar a Ler.



Neste mês, o professor João Batista Araujo e Oliveira responde sobre Como ensinar a Ler.

1. O que significa ensinar a ler? Ensinar a ler é o mesmo que alfabetizar?


O termo alfabetizar é mais amplo, pois engloba o ensino da leitura e da escrita. Aprender a ler, no sentido estrito, refere-se unicamente à leitura. Mas isso não basta, o importante é entender o que significa saber ler e escrever. Por isso a palavra alfabetização é mais rica, pois ela se refere, com precisão, à aprendizagem inicial da leitura e da escrita. No caso da leitura, o aluno está alfabetizado quando consegue identificar uma palavra escrita, conhecida ou não – ainda que a leia com certa dificuldade. O aluno consegue ler aplicando conhecimentos a respeito do funcionamento do código alfabético. Da mesma forma, ele demonstra que sabe escrever, no contexto da alfabetização, quando é capaz de reproduzir por escrito uma palavra que pensou ou ouviu, ainda que não a escreva de forma ortograficamente correcta, mas desde que respeito as correspondências entre os fonemas (sons) e os grafemas que os representam. É este o sentido popular, o sentido tradicional e o sentido prático do termo alfabetização. O termo não esgota as dimensões do processo de aprender e ensinar a ler e escrever, ele apenas se refere à importante etapa inicial do domínio do código alfabético, e tanto vale para a leitura quanto para a escrita.

2. O que significa aprender a ler?

Aprender a ler significa ser capaz de pronunciar o som de uma palavra escrita. Este é o sentido primeiro, estrito e preciso, e que deve constituir a primeira e maior preocupação durante o processo de alfabetização. Mas ele não esgota todas as dimensões do processo de aprender a ler, muito menos dos objectivos de aprender a ler.

Aprendemos a ler para entender o significado do que está escrito, portanto, a apreensão do sentido é uma dimensão constitutiva do acto de ler. Só que essa dimensão da compreensão é independente, do ponto de vista cognitivo: antes de aprender a ler a criança já conhece o sentido de muitas palavras.

O acto de identificar (ler) uma palavra não garante que você irá aprender o sentido da mesma. Por exemplo, você é capaz de ler termos técnicos de disciplinas como a física ou astronomia mesmo sem compreender o sentido. Da mesma forma, compreender o sentido de uma palavra não significa que você sabe ler – de outra forma a criança que chega à escola ou o analfabeto adulto não seriam capazes de compreender nada.

Ademais, saber o sentido de uma palavra não significa que vamos entender o seu sentido numa expressão, ou numa frase. A palavra “casa” na expressão “casa de botão” tem um sentido diferente do sentido usual.

As palavras fazem sentido nas frases e nos textos, e o sentido dos textos só se compreendem em referência a outros textos ou às realidades a que eles se referem. Portanto, o processo de leitura é sempre um processo de análise e interpretação, e vai muito além de simplesmente identificar a palavra. Mas isso não tira nem a importância, nem a especificidade, nem a primazia que deve ter o ensino da leitura no processo da alfabetização.

3. Qual é a importância do aluno identificar as palavras? Em que consiste o processo de identificar palavras? Isso é o mesmo que descodificar?


Para entender bem essa questão devemos distinguir o processo de ler do processo de aprender a ler. Quem já sabe ler, por definição, é alguém que identifica automaticamente as palavras. “Bate o olho e lê”, como se diz na linguagem popular.

Mas mesmo um leitor experiente leva mais tempo para identificar determinadas palavras – por exemplo levamos mais tempo para pronunciar a palavra “otorrinolaringologia”, pois temos que usar nossas competências de descodificação para isso.

Esta é uma forma de provar a existência de dois processos de identificação das palavras, o processo lexical, ou seja, captamos de uma vez a forma, som e sentido da palavra, e o processo fonológico, pelo qual formamos primeiro o som para depois compreendermos o sentido da palavra.

Em todos os dois processos o cérebro utiliza a via fonológica, só que no primeiro, ela ocorre de forma praticamente simultânea à via lexical. Não existe leitura sem a activação das partes do cérebro responsáveis pela formação do som da palavra, pela identificação dos fonemas com os grafemas.

Isso posto, podemos responder à pergunta inicial.

Para aprender a ler, o aluno precisa aprender as regras do código alfabético, ou seja, a correspondência entre os sons e as letras que os representam, e vice-versa, no caso da escrita. O encontro repetido com palavras que o aluno sabe descodificar leva à identificação automática.

O aluno que lê descodificando lê mais devagar, pausadamente, normalmente “emendando” os fonemas para pronunciar a palavra. O leitor mais proficiente lê a palavra inteira de uma vez, embora sua visão e seu cérebro identifiquem todas as letras. Aprender a descodificar palavras constitui o cerne do processo da alfabetização, e deve ocupar a maior parte do tempo no programa de ensino. No entanto, isso não esgota nem o programa de alfabetização e, muito menos, os desafios de ensinar e aprender a ler e escrever.

4. Se o bom leitor não descodifica ao ler, porque devemos ensinar as crianças a descodificar?

Adulto não gatinha.
Mas para aprender a andar, ele aprendeu a rolar, sentar-se, apoiar a cabeça, levantar com apoio, gatinhar, andar com apoio, andar sozinho, subir um degrau, depois subir dois, saltar, correr, etc.
Adultos não gatinham, mas aprenderam a andar seguindo um longo processo. O mesmo ocorre numa construção, para levantar um muro, construímos andaimes. Depois do muro pronto, tiramos os andaimes.

Aprender a descodificar significa aprender os segredos, as regras de funcionamento do código alfabético. Tecnicamente falando, significa aprender a valência, o valor dos grafemas (letras) que representam os fonemas, ou sejam, os sons que emitimos para formar as palavras. Esta é uma etapa necessária e essencial para o processo de alfabetização. Qualquer que seja o método usado para ensinar e aprender a ler, a etapa mais importante desse método consiste em aprender a associar, de forma sistemática, os fonemas e grafemas. Esta talvez seja a única área de consenso entre todos os estudiosos dos fenómenos da alfabetização.

5. O que são pseudo-palavras? Por que pseudo-palavras são a melhor forma para se avaliar se o aluno sabe descodificar?


Pseudo-palavras são palavras que ou não existem ou não foram inventadas. Por exemplo, maito, lunga ou bonga. Essas palavras poderiam perfeitamente existir em nossa língua. Existindo ou não, sabemos a forma certa de pronunciá-las e de escrevê-las. O uso de pseudo-palavras é muito útil para avaliar se um aluno sabe efectivamente aplicar as regras do código alfabético para ler. Se o professor pede para o aluno ler a palavra “mato” o aluno pode ler porque decorou, porque viu a palavra muitas vezes. Mas se o professor pedir para o aluno ler a palavra “matu” ou “moti”, o aluno tem que aplicar correctamente as regras do código alfabético para ler ou escrever correctamente essas palavras.

6. Como passar da leitura de cada palavra para uma leitura mais fluente?


Não existem estágios naturais de aprendizagem da leitura. O aluno vai progredir se for ensinado, se aprender, se treinar e se dedicar muito à leitura. É muito fácil comprovar essa afirmação – basta entrar numa sala de aula das séries iniciais – ou mesmo mais avançadas – e verificar que os alunos lêem com níveis muito diferentes.

Submetidos a um bom ensino, e com esforço compatível, o aprendiz passa da etapa de descodificação para a etapa de identificação automática das palavras. Daí começa a ler frases – progressivamente maiores e mais complexas do ponto de vista sintáctico. A leitura fluente é aquela que reflecte uma entonação adequada, consistente com o sentido do que é lido. Além disso, a leitura fluente se faz sem erros e com facilidade, ou seja, sem que o aluno demonstre dificuldade para extrair o som das palavras escritas.

O processo de ensino deve contemplar várias etapas. Para identificar automaticamente as palavras, o aluno deve ser exposto repetidamente à mesma palavra. Quatro ou cinco exposições a palavras conhecidas e simples normalmente são suficientes para o aluno gravar a forma ortográfica das mesmas. A exposição deve ser espaçada no tempo, ou seja, retomada em dias posteriores. Já o desenvolvimento da fluência depende do aluno reler várias vezes o mesmo texto. A repetição é o primeiro critério, mas não é o único. Um texto adequado para desenvolver fluência deve ter palavras cujo sentido o aluno já conhece, palavras que em sua maioria o aluno é capaz de descodificar, estruturas sintácticas simples e estruturas repetidas. Ao longo do processo de desenvolvimento de fluência – que normalmente vai até o 5º ou 6º ano, o aluno vai lendo textos progressivamente mais complexos. O desenvolvimento da fluência requer, ainda, uma modelagem precisa, ou seja, o professor ou adulto demonstra ao aluno como ler com fluência e o ajuda a superar as suas dificuldades, calibrando o nível de dificuldade dos textos e avaliando seus progressos nas dimensões críticas de prosódia, número de erros e velocidade de leitura.

7. Existem estágios naturais de alfabetização? Existe uma etapa silábica?


Se existissem estágios naturais de alfabetização não haveria analfabetos, nem dentro da escola nem fora dela. Portanto, a existência de analfabetos, dentro e fora da escola, é prova cabal e definitiva de que não existem estágios naturais de alfabetização. Natural significa algo que vem da natureza, e se realiza de forma automática, sem necessidade de intervenção adicional. É natural aprender a falar – desde que tenhamos um interlocutor – ou andar. Não é natural aprender a ler. Aprender a ler e escrever requer ensino. Algumas pessoas precisam de mais orientação que outras. A maioria das crianças, em todos os países, precisa de um ensino preciso e muito detalhado para aprender a ler e escrever bem.

Da mesma forma que não existem estágios naturais de alfabetização, não existe uma fase silábica universal, ou seja, uma fase da aprendizagem que todas as crianças usam uma consoante para representar uma sílaba (C para cachorro ou P para pato). As crianças que fazem isso o fazem em função do tipo de ensino que receberam. Crianças que aprendem por métodos globais do tipo ideovisual ou por métodos fónicos não fazem isso. Dizer que uma criança está na fase silábica significa simplesmente que a criança não aprendeu sobre o funcionamento da língua, cuja unidade mais elementar é o fonema, e não a sílaba. Trata-se de um resquício do conceito de silabação que era a base dos antigos métodos de silabação.

8. O que é um sistema de escrita? Qual o sistema de escrita da Língua Portuguesa? Por que um professor alfabetizador precisa saber a respeito de sistemas de escrita?

A escrita é uma forma de grafismo, de representação gráfica de ideias. No caso da escrita alfabética, ela representa as palavras da fala por meio de letras. Um sistema alfabético – como é o caso do sistema de escrita da Língua Portuguesa – representa os fonemas que compõem a palavra por meio de sinais gráficos chamados grafemas. Um grafema é formado por uma ou mais letras (a, b, ch, ss, rr). O alfabeto é o conjunto das letras utilizadas para representar os fonemas de uma dada língua. Ele é um código, uma forma de representação, em que cada letra possui um ou mais valores, de acordo, por exemplo, com a posição da letra na palavra.

Um professor alfabetizador necessita uma boa formação em Língua Portuguesa, e, especialmente, no capítulo que trata da Fonética. De modo particular ele precisa conhecer quais são os fonemas, o que eles significam, o que eles representam, e, claro, como são representados em nossa língua.

9. Por que é mais fácil e rápido alfabetizar crianças em algumas línguas do que em outras?

Se você fizer um ditado com seus alunos das séries iniciais, é muito provável que eles irão escrever algumas palavras mais correctamente do que outras. Eles terão mais facilidade em escrever palavras como bolo do que bolha, fala do que gala, e terão mais dificuldade em palavras com encontros consonantais e dígrafos, como por exemplo a palavra “problema”. Isso se explica pela complexidade ortográfica da palavra. Isso também prova que a identificação correcta de palavras na leitura e escrita é função da complexidade ortográfica da palavra, e não do sentido ou da familiaridade do aluno com as mesmas.

Em algumas línguas alfabéticas, a complexidade é maior do que outras. Por exemplo, na Língua Portuguesa o fonema /ô/ pode ser escrito com a letra “o” ou com a letra “ô”. Em francês, esse mesmo fonema pode ser representado por mais de 10 grafemas, tais como o, ot, au, eau, eaux, etc. Isso torna a aprendizagem da escrita – e especialmente da ortografia – mais desafiante. As línguas em que as correspondências entre grafemas e fonemas são mais próximas são chamadas línguas mais transparentes. Nesses países, as crianças normalmente se alfabetizam no prazo de um ano. Nos países em que a correspondência é mais complexa e variada, a língua é chamada de opaca. O inglês é a língua mais opaca. Normalmente as crianças levam 3 anos para se alfabetizar nesses países. A Língua Portuguesa está mais próxima do meio termo, mas é muito menos complexa do que o francês, língua em que as crianças normalmente se alfabetizam ao longo de dois anos lectivos.

Esse aspecto da língua – transparência e opacidade – também constitui uma prova de que no processo da alfabetização o factor crítico não é o problema da compreensão do sentido das palavras, e sim, do funcionamento do código ortográfico. Se a questão fosse o entendimento do sentido das palavras, não haveria razão para uma diferença de 2 anos lectivos para se alfabetizar as crianças. A dificuldade maior ou menor de aprender a ler e escrever tem a ver com as características da transcrição do código ortográfico, e não com o entendimento do sentido dos textos.

10. No processo de alfabetização, como distribuir o tempo entre as várias competências que constituem o processo de ensinar a ler e escrever?

Esta é uma decisão que depende, fundamentalmente, dos requisitos estabelecidos no Programa de Ensino. Um programa de ensino consistente com os conhecimentos mais actualizados sobre alfabetização deve dedicar 60% do tempo, pelo menos, às competências específicas da alfabetização, e o restante do tempo a outras actividades relevantes como a caligrafia, desenvolvimento de vocabulário e compreensão de textos. Além disso, claro, deve haver tempo para tratar de outras questões, como a matemática, o conhecimento do mundo, a ciência, as artes e actividades físicas.

Sem comentários:

Enviar um comentário